A cela de pouco mais de 20m², fora por oito anos o único lugar que pode chamar de lar. Peter sabia que aquela agonia já estava chegando ao fim, sua sentença havia sido proferida há uma semana, e na manhã do dia seguinte, exatamente em um sábado, às 21:15 da primavera de 2010, Peter não passaria de só mais uma estória que seria esquecida, no minuto seguinte à sua execução. Ele adorava os sábados e principalmente a primavera, embora as únicas flores que lhe fossem visíveis, eram aquelas vistas nas fotos que guardava em seus pertences. Resolveu passar aquele dia revendo as fotos, os sorrisos, os cabelos ruivos semi encaracolados, de sua namorada Lindsen. Ele observava tudo, como se estivesse revivendo aquele momento mais uma vez, como já fizera tantas vezes ao longo daqueles oito anos de agonia; Via o rio atrás do casal que conversava com amor, relembrava do cheiro daquela época do ano, do gosto do beijo de Lindsen, de como se amavam... aquilo lhe trouxe uma nostalgia, saudades de tudo que ficou para trás e que ele tinha certeza de que não voltaria a existir jamais, pois Lindsen estava morta e, ele também! Lindsen fora o motivo de sua condenação, uma condenação errônea, pois ele jamais despedaçaria a flor que mais cultivara, que tinha mais amor, que havia cuidado com mais zelo... Mas o júri não entendera assim, e proferiu a sentença: Condenação à morte!
Envolvido em seus pensamentos, ouviu alguém chamar-lhe à porta da cela, era o carcereiro.
O carcereiro era um homem bom! Um senhor de 70 anos, calvo, um pouco gordo, com 04 filhos para criar sozinho, pois a esposa o trocara por um homem mais jovem e rico, nunca mais dando notícia alguma... Aquela fora a única amizade que Peter cultivara naquele local, e agora, mais uma vez ele o chamava, talvez pela última vez. Ao chegar próximo às grades, o carcereiro o entregou as escondidas, um papel dobrado e o perguntou:
- Qual é seu último desejo?
Naquele instante Peter não sabia se chorava ou ria de desespero, era hilária aquela pergunta.
Tinha vontade de dizer que seu último desejo era: a vida!
Aquilo lhe parecia absurdo, pois o que mais alguém pode querer quando sabe que irá morrer? Não seria a vida, o ar, correr, pular, sumir para qualquer lugar onde não te encontrem, onde se sinta a brisa leve tocar seu rosto, o perfume da relva molhada enchendo suas narinas?
Por alguns instantes ele exitou em responder aquela simples pergunta, mas que para quem tinha seu tempo contado, fazia toda diferença!
Olhou para os olhos do carcereiro, que transpareciam, tristeza e compaixão! Peter não entendia como aquele homem poderia portar-se daquela maneira diante da situação, ele já devia ter feito aquela mesma pergunta para dezenas de pessoas! Olhando para suas mãos, viu o papel dobrado que lhe havia sido entregue, imaginou se tratar de uma espécie de manual de conduta para sua execução, revolveu deixar para lê-lo depois!
Novamente Peter perdeu-se de si mesmo, abaixou a cabeça, e se entregou às milhares de recordações que haviam o transformado no que ele era naquele instante, e assim, em um sussurro, balbuciou:
- Meu último desejo é simples! Pegue aquele banco e se sente próximo a mim como amigos na mesa de um bar, onde se tornam heróis e vilões, e aquele é seu campo de batalha, onde é tão fácil vencer sem lutar. Quero te contar minha estória, aquela que daqui há algumas horas, não passará de um epitáfio em uma lápide gélida!
Os homens se sentaram: Peter na cama, a qual por aquele anos fora testemunha de seus sonhos de liberdade, uma porta para fora daquele cárcere... O carcereiro puxou um banco de metal e se sentou de frente para ele. Conversaram por horas! Peter contou-lhe sobre suas travessuras de criança; sobre o cheiro da comida de sua mãe; sobre o primeiro beijo na namorada; sobre quando caiu de bicicleta e ralou o joelho, seu pai veio louco pegá-lo no colo, para aconchegá-lo, protegê-lo; falou ainda sobre o que de fato havia ocorrido com Lindsen, ela tinha distúrbios psiquiátricos, tendências suicidas e, quando tomou a decisão de ceifar sua vida, não imaginava que também estaria acabando com a de Peter, que fora condenado por Envenená-la! Ele amava aquela mulher, mas quão amargo era o sabor dela ter condenado sua vida, quando a dela ficou tão insuportável!
Finalizou sua estória, com o rosto enterrado nas mãos, as lágrimas que brotavam de seus olhos, gotejavam no chão, sob o olhar perplexo e observador do carcereiro, que saiu sem dizer uma palavra!
Vendo-se sozinho, Peter, caiu em um sono profundo, talvez fosse seu último sonho, seus últimos suspiros, já que para ele a transcendência da matéria, sempre fora visto com desconfiança!
Acordado por duas batidas nas grades, Peter olhou para um homem vestido de preto, e um carcereiro diferente do de outrora, lhe informando que faltavam meia hora para sua execução, e que aquele padre o daria a extrema unção, rezando consigo a fim de perdoar seus pecados.
Peter sentiu-se agradecido, mas sempre se opôs à idéia da fé católica, não só católica, e sim a qualquer tipo de dogma, que para ele era uma forma de domesticar o pensamento do ser humano!
- Senhor me sinto agradecido, mas não preciso redimir de meus pecados. Acredito que não tenho nenhum, pois não vejo pecado em viver! A vida não tem um manual de instruções, então como me imprimir uma idéia moralista de pecado? Não acredito que eles existam, mas se assim o fosse teria errado mais! Reze para Lindsen, para que ela descanse em paz, e para que se existir um Deus, ele possa perdoá-la por não ter tido a audácia de se encantar com seus erros, de rir de sua vida, e não se afogar em um mar de decepções, de amarguras, de tristezas maquinadas pelos padrões morais impostos que a mataram.
Dizendo isso, foi para o único cômodo reservado que havia em sua cela: o banheiro! Ali despiu-se e sentiu a água tocar seu corpo como se fosse a primeira vez; como era maravilhosa aquela sensação, como a água era quente, como o quente era morno, e como o morno aquecia!
Sorriu como uma criança ao tocar todas as partes de seu corpo, se encantou... ele existia, e agora sabia disso, sabia que existia, e existir era magnífico, era tão maravilhoso, era esplendido, nunca parara para apreciar seu corpo, suas formas, tatear suas partes com absoluta atenção, e agora que iria perder-se de di próprio, foi que de fato encontrou-se em si mesmo. Fechou o chuveiro, enxugou-se, colocou o terno italiano que haviam lhe dado para aquela ocasião especial, nunca antes usara terno, ainda mais italiano, não tinha dinheiro para comprar! E agora que iria morrer, a Casa Branca lhe enviara um como se fosse um cartão de agradecimento, por morrer, e não ser mais naquela prisão, um peso econômico para o estado.
A porta da cela foi aberta.
Peter começou a caminhar em direção a saída, mas lembrou-se do papel que o carcereiro havia lhe entregue. Foi até a cama abriu o pequeno bilhete, e deparou-se com uma única frase, uma frase em latim que não lhe fez sentido algum, mas não importava a falta de sentido, pois neste momento, não lhe importava mais os modelos definidos, de que todas as coisas tivessem de ter e fazer algum sentido! Ele fora lembrado por aquele homem, e aquilo já lhe era suficiente.
Então, colocou o papel no bolso do terno que vestia, e pôs-se a caminhar, deixando para sempre aquela pequena cela de prisão que por anos fora seu universo, nem tão grande nem tão pequeno, mas apenas suficiente para si mesmo.
E naquela noite, exatamente às 21:15, do dia 24 de setembro do ano de 2010, Peter, deixou esta vida após 2300 volts percorrer seu corpo, arruinando seus órgãos vitais. Dentro do paletó do terno que vestia, foi encontrado pela lavadeira da prisão, um pequeno pedaço de papel, cujo mesmo estava escrito: “Ad partus ovium noscuntur pondera ventrum”! Ela, assim como Peter não entenderam nada, mas anos depois a História de Peter foi contatada em um livro chamado: No fim é que se cantam as glórias! Escrito por um certo senhor que trabalhara naquela prisão, e testemunhou o último desejo de Peter, fazendo parte do seu universo, e lhe permitindo fazer parte do seu, permitindo ser a única coisa semelhante a Família por aquele, que outrora fora.